Conto inédito do autor Wesley Barbosa com exclusividade para o blog Bibliotecas do Brasil

16.4.17


Em um breve período em 2015, quando ainda não estávamos totalmente absorvidos pelo nosso trabalho na Magnolia Cartonera, abrimos espaço no blog Bibliotecas do Brasil para autores independentes mostrarem seu trabalho. Na ocasião conhecemos o Wesley Barbosa, que estava próximo de lançar seu livro O Diabo na Mesa dos Fundos pelo Selo Povo do escritor Ferréz
Nessa época, publicamos um conto inédito do Wesley, leia nesse postEm 2016, novamente Wesley Barbosa esteve presente aqui no blog Bibliotecas do Brasil, dessa vez ele nos contou que estava para para lançar o seu livro, leia como foi nesse post
Agora em 2017, novo ano, novas empreitadas e novos caminhos a serem seguidos, Wesley nos enviou um conto inédito, a ser publicado em primeira-mão aqui no blog Bibliotecas do Brasil. Leia agora o conto:


Morei no JD Magdalena de fevereiro até mais ou menos setembro do ano passado em uma casa sem reforma, com a pintura toda desbotada e um cheiro de mofo que emanava das paredes. Não havia luz, pois o dono que, por camaradagem, permitiu que eu ficasse morando lá, até  eu arranjar um trabalho, não podia despender tempo com aquele tipo de coisa.
Me deixou à vontade com meus manuscritos e livros espalhados pela mesa (até então o único móvel que havia na casa) Sem saber exatamente o que fazer dali em diante, eu ficava indo aqui e ali, trabalhando na divulgação do livro, que eu escrevera meses antes e o publicara, em janeiro daquele mesmo ano.
Às vezes eu chegava em casa às dez horas, ou meia-noite, não tinha horário certo…
O pessoal lá da rua tinha curiosidade, queriam saber o que um cara esquisito como eu andava fazendo, morando sozinho, sempre saindo com livros e voltando de madrugada em casa?
Eu não gostava de dizer para ninguém que era escritor, entretanto, algumas vezes não tinha como escapar daquilo. 
Um belo dia um guri, todo mulambento e sujo, que gostava de conversar comigo(devia ter uns 13 anos) vendo – me sair para a rua, me abordou, dizendo:
- O que você faz?  
Como sempre, diante daquele tipo de pergunta, fiz cara feia para o fedelho, que insistiu:
- O que você faz todos os dias trancado aí dentro, tio?
Eu disse ao menino que não era da conta dele, mas com um pouco de vaidade deixei escapar: falei que estava escrevendo uma obra literária.
O guri, por sua vez, riu com naturalidade, depois perguntou:
- O que é  uma obra literária? 
- Uma obra literária – tentei explicar- tanto pode ser composta por poesia em verso ou em prosa, quanto um livro de contos, teatro, romance, etc…
Senti – me meio sem jeito, diante da cara que o fedelho fizera, como a desaprovar o que eu acabara de explicar.
E, a fim de algo que realmente lhe despertasse a curiosidade, questionou – me:
- Como se escreve um livro?
- Com realidade, ficção, emoção, sentimento e poesia.
- Como assim, tio?
- Traduzindo tudo isso em palavras.
Ele fez uma cara de que continuava sem entender nada.
Eu disse, meio arrogante:
- Você não vai pra escola não, é? 
- Não - respondeu ele - nunca fui pra escola.
- Cadê seus pais, - perguntei com interesse- estão trabalhando? 
- Eu não tenho nem pai nem mãe - disse o menino, cabisbaixo.
-Onde você mora guri?
-Aqui mesmo.
Olhei para ele, tentando disfarçar o sentimento de pena que estava sentindo, mas, de repente, outras crianças  surgiram, deviam ter mais ou menos a idade do menino, de 10 a 13 anos. Virando-se para a molecada, o garoto saiu correndo e se juntou às outras crianças, que corriam pra lá e pra cá, apertando as campainhas dos vizinhos, mexendo com os transeuntes na rua e brigando entre eles próprios.
Mas o que diferenciava as outras crianças do menino? É que elas tinham casa, podiam tomar banho, almoçar e jantar, sempre que quisessem.
O menino, mirrado, mulambento,  sujo, e de olhos tristes, como todo garoto de rua, para onde ia?
Devia ficar perambulando, se aquecendo do frio da noite, com os papelões que fazia de cama ou de cobertor, nas madrugadas de inverno. Às vezes tentava arranjar algo para comer, nos poucos lugares que serviam janta no bairro, ou simplesmente via o dia amanhecer, com a barriga roncando de fome.
No dia seguinte encontrei o molecote encostado no muro de casa, olhando para o nada, como que mergulhado em seus próprios pensamentos, assim que me viu, foi puxando assunto:
-Que livro é esse, tio?
Eu disse:  
- As aventuras de Robson Crusoé
 Ele disse: 
- Do que fala?
Falei para o menino que se tratava da história de um aventureiro que ficara ilhado há mais de vinte anos. Notando o fascínio na face do garoto, que sorria e se impressionava a cada passagem que eu contava do livro, falei-lhe sobre os prodigiosos feitos de Robson e como, finalmente, ele conseguira voltar para a civilização.
Os moradores que passavam e nos via conversando, sentados na calçada de casa, olhava-nos com desprezo, mas isso não nos incomodava.
Uma tarde em que eu estava sem nada para fazer e sem inspiração, até mesmo para escrever uma única linha, juntei-me ao menino que estava sentado na calçada e lhe ofereci um pãozinho com mortadela.
Sorrindo com os dentes podres e amarelados, ele estendeu a mão, pedindo-me que ficasse e contasse um pouco mais sobre as Aventuras de Robson Crusoé.
- Não posso – menti.
- Por quê?
- Estou muito ocupado hoje.
- Só um pouco tio.
- Desculpa.
Ao entrar em casa me joguei em cima do colchão sem estrado e fiquei de barriga para cima, fazia um bom tempo que eu estava morando naquela casa, e era hora de dar o fora.
Do lado de fora o guri gritava:
- Tio! Tio!
Abri a porta dizendo, emburrado:
- Que é?
- Conta a historia pra mim, como termina?
Sem muita paciência me dirigi até a mesa, peguei o livro do Daniel Defoe e dei para o menino.
- Mas eu não sei ler.
- Uma boa hora para aprender guri.
- Obrigado.
O menino sorriu, sempre com os dentes podres e amarelos, por causa da falta de cuidado. Lembrei-me que muitas vezes, no escuro daquela casa, os livros e os autores antigos, de países distantes, haviam sido minhas únicas companhias. Imaginei que de algum modo o menino pudesse se valer do livro com real utilidade.
Passado os meses o dono da casa pediu-me que eu deixasse o lugar, pois ele reformaria o lugar. O menino? Nunca mais o vi, depois daquele dia. Fiquei me perguntando se eu deveria ter-lhe dado mais atenção aquele dia, e tentava imaginar onde realmente ele deveria estar, talvez tivesse sido raptado pelo juizado de menores, que juizado?
Arrumando os manuscritos, os livros, as roupas e os papéis espalhados em cima da mesa eu finalmente tinha algo para escrever.


Wesley Barbosa


Wesley Barbosa é de Itapecerica da Serra/SP e tem um livro lançado pelo Selo Povo do escritor Ferréz. Wesley divulga e publica seu textos, poemas e contos em seu blog desde 2009. O autor faz parte do encontro de Literatura Marginal desde maio de 2014, onde começou a divulgar no microfone seus primeiros trabalhos. Wesley autor concluiu o ensino médio, trabalhou em biblioteca escolar e também como repositor de supermercado, além de desenvolver diversas outras atividades. O Diabo na Mesa dos Fundos é seu livro de estréia. Adicione o Wesley no Facebook para acompanhar seu trabalho. Email para contato: wwesleyacessa@gmail.com


Algumas palavras

'Então Dani... esse texto que te enviei faz parte de um conjunto de histórias, que escrevi após a publicação de 'O Diabo na Mesa dos Fundos', e que será um novo livro que irei publicar, são historias de pessoas que conheci por acaso pelas noites loucas do centro, histórias da época em que fiquei alguns meses morando em uma casa sem luz elétrica, lendo e escrevendo à luz de velas, vivendo apenas do dinheiro do livro, O Diabo na Mesa dos Fundos. Mas esse novo conto é um olhar mais para dentro da alma dessas pessoas, é bastante intimista. 


Fotos: Wesley Barbosa

Bibliotecas do Brasil de Daniele Carneiro e Juliano Rocha 
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