A transgeneridade nas bibliotecas e espaços de leitura - Entrevista com Eli Prado

19.11.17


Eli Prado é um homem transgênero de 23 anos, escreve desde a infância e tem quatro livros publicados de forma independente. Natural de Registro, cidade de São Paulo, Eli estuda Filosofia na UFPR, se dedica à escrita de uma trilogia, e faz estágio há quase um ano em uma das bibliotecas públicas municipais de Curitiba. Eli tem em seus planos futuros lecionar e aprender a conciliar literatura, filosofia e ensino. Conversamos com o Eli sobre sua vida, sobre como é seu trabalho em uma biblioteca pública, e como ele lida com situações difíceis e constrangedoras no trabalho e no dia a dia, por causa da falta de visibilidade direcionada às pessoas transgêneras.

Escrita e transgeneridade


"Eu gosto de fazer os meus relatos quase diários no Facebook de coisas que acontecem comigo que não teriam acontecido caso eu não fosse uma pessoa transgênera. Contar como eu enfrento o medo da discriminação diariamente, como eu lido com situações constrangedoras, como às vezes eu preciso me preparar psicologicamente antes de ir pra algum lugar absolutamente normal, simplesmente pelo fato de eu ser trans. Eu gosto de contar isso tudo da forma mais próxima da realidade possível, porque foi lendo relatos de pessoas trans que eu me vi naquelas histórias, e hoje com 23 anos, tenho uma compreensão ampla do que eu sou e porque me sinto de determinadas formas em determinadas situações".


Eli realiza contações de histórias para crianças na biblioteca

Estágio em biblioteca pública para pessoas transgêneras


"Como sou estagiário, faço um pouco de tudo que posso na biblioteca, desde a organização dos livros nas estantes, atendimento ao público até as atividades com crianças, jovens e adultos. Tenho enorme paixão pelas atividades de roda de leitura, cinedebate e contação de histórias que desenvolvo, e não tenho preferência por alguma faixa etária específica. Lidar com pessoas de todas as idades e levar o amor pela leitura à elas é realmente incrível para mim. Rolou uma identificação tão forte com esse trabalho que todos os anos anteriores que trabalhei em outras áreas, não me trouxeram uma transformação pessoal tão profunda quanto trabalhar na biblioteca trouxe. Hoje a minha noção de 'biblioteca', e mais ainda, de 'trabalhar numa biblioteca' é completamente nova e eu acho isso maravilhoso. Eu vejo em mim a transformação que eu também tento levar à vida das pessoas que eu atendo.
Antes de começar a trabalhar na biblioteca eu já era escritor, então já tinha algum interesse em trabalhar com literatura e livros, mesmo que isso significasse trabalhar apenas com os meus livros, hahaha. Eu vejo hoje na literatura um instrumento de transformação poderosíssimo. Mesmo que depois do meu estágio, eu acabe saindo da área de cultura e da literatura para dar aulas, eu sei que vou aproveitar muito do que venho aprendendo e praticando durante o meu estágio".


Atividades de leitura ao ar livre realizadas pelo Eli


Situações enfrentadas por uma pessoa transgênera em bibliotecas públicas e na universidade


"Eu tive uma baita sorte de começar a trabalhar na Casa da Leitura Miguel de Cervantes, que eu vejo como um espaço seguro e que respeita totalmente as pessoas LGBT. Eu já me identifico como trans há alguns anos, mas só 'saí do armário' no começo desse ano e eu tenho certeza que identificar o meu local de trabalho e a minha faculdade, como lugares seguros para falar abertamente sobre mim, foram coisas importantíssimas para que eu desse esse passo. No trabalho, o que eu ainda enfrento hoje é o fato de não ter uma aparência 'passável' (não apresentar características físicas ditas 'masculinas'), e o público que frequenta as atividades me tratar no feminino. Mas como eu sempre estou com algum mediador de leitura me acompanhando nas atividades, mesmo que alguém no público me trate no feminino, meus colegas de trabalho continuam me tratando no masculino. Isso é algo que realmente me toca profundamente e me dá forças para enfrentar qualquer coisa que eu possa passar durante uma atividade. Gostaria de contar algo que ocorreu há algum tempo numa atividade que eu acompanhei com um grupo de idosos. Eu só estava assistindo a atividade que outro mediador de leitura estava realizando e os participantes já eram muito próximos desse mediador, por ele fazer atividades há algum tempo. Antes de eu ser apresentado por ele, alguns dos participantes me trataram no feminino, mas depois de ter sido apresentado como 'Eli, o estagiário da Miguel de Cervantes', todos passaram a me tratar no masculino. Falar sobre isso hoje até me deixa emocionado. Eu imagino que se eu estivesse trabalhando em ambientes como os que trabalhei antes, provavelmente esse respeito não viria assim tão naturalmente".



Eli realizando suas atividades literárias com as crianças


Acolhimento de uma pessoa transgênera por colegas de trabalho na biblioteca 


"O termo 'transição' é usado pra dizer quando a pessoa trans começa a fazer modificações corporais, mas eu acredito que a partir do momento que a pessoa se compreende como trans e passa a se apresentar publicamente como tal, já é uma transição, mesmo antes de existirem modificações corporais. Admito que mesmo sabendo que eu estava num espaço seguro que respeita toda a diversidade LGBT+, senti um frio na barriga quando finalmente falei abertamente sobre a minha mudança de nome, sobre meu gênero e tudo mais. Eu fiz uma publicação no meu Facebook numa noite, quando eu percebi que o armário era um lugar triste demais pra eu me manter ali, e na mesma semana mudei muita coisa na minha vida. Comprei roupas masculinas, pedi o uso do nome social na faculdade e dei entrada no processo transexualizador do SUS (Sistema Único de Saúde). Como eu já tinha algumas pessoas do meu trabalho no Facebook, incluindo a Ísis - funcionária administrativa da Casa da Leitura Miguel de Cervantes, e pessoa em comum que indicou o Eli ao blog Bibliotecas do Brasil para essa entrevista - que trabalha na mesma Casa da Leitura que eu, eles souberam do início da minha transição pelas redes sociais. Inclusive aconteceu algo muito bonitinho e que eu guardo com carinho no meu coração no dia seguinte à minha publicação no Facebook. Geralmente quando eu chego no estágio e tenho algumas coisas estabelecidas pra fazer, a Ísis deixa um bilhete com o meu nome e uma listinha de tarefas. No dia seguinte à publicação sobre a minha transição, a lista de tarefas estava com meu nome social 'Eli' no topo da lista. Parece algo muito simples falando assim, mas foi algo realmente muito significativo pra mim, e que me fez perceber que eu podia ficar tranquilo, porque no meu local de trabalho eu seria respeitado. E foi o que aconteceu".


Descaso com o nome social de pessoas transgêneras na Biblioteca Pública do Paraná

O Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016 assinado pela presidenta Dilma Rousseff, dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. O nome social é o nome pelo qual pessoas transgêneras e travestis preferem ser chamadas cotidianamente, em contraste com o nome oficialmente registrado que não reflete sua identidade de gênero. É a designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida. Como o disposto no decreto, os órgãos e as entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, em seus atos e procedimentos, deverão adotar o nome social da pessoa travesti ou transexual, de acordo com seu requerimento. Acesse o decreto aqui para ler na íntegra.

Eli fala sobre o assunto:

 "Acho importante divulgar o número da lei e sobre o que ela dispõe. Primeiro porque quando se é trans, a gente tem que ter o número desse decreto na ponta da língua, pois mesmo nos órgãos públicos muitas vezes há o desconhecimento sobre isso. Segundo, porque há empresas privadas, como bancos que respondem de forma inconveniente e desleixada suas reclamações, que justificam a impossibilidade do uso do nome social a partir dessa lei, porque ela dispõe sobre a administração pública federal direta, autárquica e fundacional, ou seja, empresas privadas não entram na obrigação de respeitar o nome social ou a identidade de gênero de pessoas trans.
Eu percebo que a lei é muitíssimo importante, uma vez que possivelmente (e infelizmente), o respeito não surgiria naturalmente nos órgãos públicos, e a lei não só obriga que exista esse respeito como também é uma forma de disseminação de informação. Sendo obrigatório o respeito ao nome social em órgãos públicos, quantas pessoas não passaram a conhecer a realidade de pessoas trans e não teriam conhecimento disso se não fosse por essa lei?"


Na Biblioteca Pública do Paraná atendente do balcão de empréstimos perguntou ao Eli: 'Nome social é o nome que você usa nas redes sociais?'

Em seu perfil no Facebook, Eli relatou duas situações diferentes onde passou por constrangimentos ao enfrentar o despreparo, o desinteresse e o atendimento de má vontade por parte dos atendentes do balcão de empréstimos e devoluções da Biblioteca Pública do Paraná, em relação ao nome social. 

"O descaso aconteceu no último lugar que eu imaginei que passaria um constrangimento desse tipo, na Biblioteca Pública do Paraná. Antes de pedir o uso do nome social na BPP, eu já tinha feito isso na faculdade e no posto de saúde - dois órgãos públicos, assim como a biblioteca - e eu imaginei que em todos os lugares públicos eu não teria problemas com o nome social. Grande engano. Quando questionei sobre a mudança do nome no sistema, o atendente me perguntou: ‘Nome social é o nome que você usa nas redes sociais?’ Quando eu lembro disso hoje não consigo não rir, mas na hora eu fiquei bem nervoso. O atendente anotou o meu pedido num papel e jogou para que o atendente ao lado resolvesse. O outro, que também parecia não saber o que era nome social, mas demonstrou um pouco mais de interesse em resolver isso, fez uma ligação para algum outro setor da BPP e depois fez a alteração no sistema".


Eli em uma das atividades do espaço de leitura


A importância do nome social de pessoas transgêneras e do acolhimento realizado por atendentes em bibliotecas

"Eu refleti um tempo depois do ocorrido buscando explicações. Os atendentes eram dois rapazes jovens, eu podia deduzir que eram estagiários. Se eram estagiários, então estão num curso superior, e se estão num curso superior, é ainda mais assombroso o fato de não terem o menor conhecimento sobre o que é nome social. Nos meios acadêmicos e culturais que eu frequento, as pessoas sabem sobre transgeneridade, e refletindo sobre o ocorrido na Biblioteca Pública do Paraná, eu percebo que é somente nos meios acadêmicos que eu frequento que se sabe sobre transgeneridade: na Reitoria da UFPR, nos eventos culturais frequentados por essas mesmas pessoas da Reitoria e nos cursos de humanas. 
Eu tenho sorte de estar nesses ambientes e eu reconheço que enfrento muito menos dificuldades que outras pessoas trans, mas ainda assim eu tenho de estar o tempo todo alerta, porque a qualquer momento, mesmo nos ambientes 'seguros' eu posso sofrer algum constrangimento, alguma forma de preconceito, alguma violência e transfobia. A gente nunca pode relaxar totalmente. A informação sobre o nome social deve ser mais disseminada para evitar esse tipo de constrangimento, principalmente em espaços públicos, onde a lei deveria funcionar. 
Eu sei que o SUS oferece um curso online sobre atendimento e acolhimento a pessoas trans e até agora, foi nos meus atendimentos no SUS que eu mais me senti acolhido e respeitado. Às vezes uma palestra informativa entre funcionários das bibliotecas basta. Às vezes se torna interessante o incentivo ao curso online. Às vezes um cartaz com algumas informações básicas incentiva um aprofundamento no assunto. Penso que todas as formas de espalhar a informação sobre o nome social deveriam acontecer, assim como o curso do SUS que é aberto à todas as pessoas. A divulgação de informações básicas em cartazes e chamamento para palestras que tratem desses assuntos é importantíssima".


As bibliotecas e espaços de leitura precisam se tornar lugares prestativos e acolhedores com as pessoas transgêneras 

"Refletindo sobre a possibilidade de existir um setor diferenciado para atendimento a pessoas trans, logo me vem em mente a diferença entre inclusão e integração. Criar um setor específico para atendimento à pessoas trans, um banheiro diferente para pessoas trans, um lugar específico onde é autorizado manter as pessoas trans, integra, mas não inclui efetivamente essa população e não ajuda realmente na superação dos preconceitos.

"O primeiro passo é preparar os atendentes para receber esse público".

Há muito tempo as pessoas trans são acuadas a desfrutarem de serviços básicos e públicos. Mesmo com a lei em vigência, o medo do desrespeito é constante. Eu acharia muito, muito acolhedor se em algum lugar logo na entrada de uma biblioteca, por exemplo, tivesse um cartaz dizendo algo como: 

'Ei, tudo bem? Aqui seu nome social é respeitado' 

Isso possivelmente seria um atrativo para que usuários trans convidassem outras pessoas trans a frequentar aquele lugar. É importante para uma população tão marginalizada ocupar espaços que a sociedade diz que não é para elas, como bibliotecas, escolas, universidades e por aí vai. 


Projeto sobre a população LGBT na biblioteca

"No projeto que eu estou desenvolvendo agora, pretendo fazer rodas de leitura que tragam à tona discussões sobre a população LGBT em geral, não só para que pessoas não-LGBT reflitam sobre as dificuldades e preconceitos sofridos por essa população, mas também para que as pessoas trans se sintam representadas e convidadas a estarem nesse espaço, nessa biblioteca. Tornar um lugar acolhedor para pessoas trans não é difícil, não exige mudanças no ambiente físico nem grandes revoluções: basta existir o respeito. A mudança mais difícil é na atitude das pessoas".

Como leitoras e leitores ativistas, e pessoas comprometidas com incentivo à leitura podem dar visibilidade às questões das pessoas transgêneras? 


"Nós temos que dar espaço para que pessoas trans falem, e não sintam que pedir o uso do nome social pode representar um risco de levar a uma situação constrangedora. Temos que abrir as portas da biblioteca pra falar sobre literatura feita por pessoas trans, e/ou que tratem de personagens trans, tanto para discutir entre pessoas trans quanto entre pessoas cisgêneras, para disseminar a informação e levá-la cada vez mais longe. Temos que indicar livros que tratem desses assuntos quando virmos a oportunidade entre os leitores do espaço. 
Percebendo a ausência de pessoas trans, é importante que pessoas cisgêneras também problematizem essas questões em atividades de literatura, em espaços de leitura. Também temos que lembrar sempre que pequenas atitudes fazem diferença. Eu estou desenvolvendo um projeto que, entre outras coisas, traz textos literários com personagens LGBT+, é um projeto pequeno que atinge apenas um espaço de leitura, mas é a minha pequena atitude tentando fazer a diferença. Você abriu espaço para que eu falasse dessas questões todas no blog Bibliotecas do Brasil, e é uma atitude simples, que certamente vai fazer uma baita diferença. O respeito ao nome social, o uso correto dos pronomes, a demonstração da importância daquela pessoa ali, naquele momento, naquele lugar, são pequenas atitudes que não custam nada pra quem faz, mas significam muito para quem recebe".


Pedimos ao Eli que nos falasse um pouco sobre coletivos, organizações ou trabalhos na área da transgeneridade que ele acompanha, e que apoiam pessoas transgêneras e que precisam ser divulgadas



"Aqui em Curitiba eu conheço o Transgrupo Marcela Prado, uma ONG que promove palestras e cursos, e o Tô Passada, um cursinho pré-vestibular e ENEM voltado a pessoas trans, no qual dei algumas aulas, além de dar apoio das mais diversas formas possíveis à população trans da cidade e da região metropolitana. 
Também conheço o CPATT - Centro de Pesquisa e Atendimento para Travestis e Transexuais, que existe desde fevereiro de 2014 e faz acompanhamento psicológico, social e médico para pessoas trans que precisam de ajuda ao longo do processo transexualizador e inserção social. O encaminhamento para o CPATT é através do SUS (Sistema Único de Saúde). Recentemente descobri uma lista de entidades que podem ajudar, são elas: Grupo DignidadeAliança Nacional LGBTI, CEPAC - Centro Paranaense da Cidadania, Espaço Paranaense da Diversidade LGBT, IBDSEX - Instituto Brasileiro da Diversidade Sexual, APPAD - Associação Paranaense da Parada da Diversidade, Dom da Terra - Afro LGBTI.


Livros do Eli Prado

- Hey Jude - Livro com acabamento premium e miolo colorido
- Hey Jude - Livro em formato pocket com miolo preto e branco


Matéria de Daniele - Bibliotecas do Brasil
Email: contato@bibliotecasdobrasil.com
Fotos: Eli Prado - Facebook | Twitter 
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