Maceo Coutinho, estudante do curso de mestrado de 'Engenharia de Projetos com a América Latina' da Universidade Jean-Jaurès de Toulouse na França (Université Toulouse-Jean Jaurès), que anteriormente escreveu o artigo Acesso à leitura por e para todos: Magnolia Cartonera, fez um novo artigo falando sobre o trabalho, sobre os livros e sobre as ações da Magnolia Cartonera no campo da publicação independente e do incentivo à leitura.
Esse é o artigo que o Maceo escreveu sobre a Magnolia Cartonera, publicado em francês no dia de 26 março de 2021 no blog “Artes e Inovações na América Latina - Das edições cartoneras à cibercultura” (Arts et innovations en Amérique Latine - Des éditions cartoneras à la cyberculture), blog que propõe apreender no contexto as práticas artísticas alternativas ou contraculturais nos campos latino-americanos de dois meios de culturas minoritárias: cibercultura e a produção cartonera, produção artesanal de livros com capas de papelão. Dois tipos de produção que a priori são bastante separados, mas que refletem a mesma resposta às questões que atualmente atravessam os campos artísticos latino-americanos (neoliberalização do campo artístico, censura, discriminação étnica/de gênero, etc). O blog é alimentado pelo trabalho e pela pesquisa dos alunos do Mestrado em Civilizações, Culturas e Sociedades do IPEAT (Institut Pluridisciplinaire pour les Etudes sur les Amériques à Toulouse) ou Instituto Multidisciplinar de Estudos das Américas em Toulouse. Seu objetivo é apresentar e contribuir para a divulgação de produções ciberculturais e cartoneras.
Tradução do artigo de Maceo Coutinho de francês para português feita por Daniele Carneiro (Magnolia Cartonera | Blog Bibliotecas do Brasil).
Magnolia Cartonera: um incentivo à leitura comunitária e coletiva
Magnolia Cartonera foi fundada em 2014 – em Curitiba, Brasil – por iniciativa de Daniele Carneiro e Juliano Rocha, dois jovens artistas independentes (imagens dos dois fundadores acima). A fundação da Magnolia Cartonera é o culminar de vários projetos que visam facilitar o acesso à leitura. A gênese desses diferentes projetos remonta a 2012, com a criação da Biblioteca Comunitária do Sítio Vanessa localizada na zona rural do estado do Paraná, no sul do Brasil. Essa biblioteca comunitária permite que pessoas de áreas remotas tenham melhor acesso às produções literárias, incentivando as comunidades locais à leitura e ao intercâmbio cultural. O blog da Biblioteca Comunitária do Sítio Vanessa surge no mesmo ano e coloca à disposição da sua comunidade diversas publicações literárias e também as que virão.
Em 2013, foi fundada a ação Leia, empreste ou devolva, dando acesso a vários tutoriais e vídeos sobre os diferentes passos a seguir para permitir a quem quiser fundar a sua própria biblioteca comunitária. A ideia de criar a editora Magnolia Cartonera nasceu após uma viagem à capital do estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, onde Daniele e Juliano descobriram a existência da editora cartoneras. Na ocasião, os dois artistas foram convidados para uma noite com a presença de integrantes da Cartonera Boca de Rua, formada apenas por moradores das ruas de Porto Alegre (Obs: informações corretas sobre essa noite estão nesse post). Estes livros são feitos de papelão reutilizável, de forma artesanal e a um preço bastante acessível. Essa forma de produzir livros molda o jovem casal por sua originalidade: dá um visual agradável ao livro, possibilita produzir com menor custo e reduzir drasticamente o impacto ecológico.
Assim, Magnolia Cartonera nasceu em 2014 após um longo processo. Essa luta liderada por Daniele Carneiro e Juliano Rocha destaca uma indústria do livro estritamente orientada para o mercado econômico. Na contramão desse pensamento mercantilista, Daniele Carneiro explica em um vídeo datado de 2018 o interesse de publicar livros de papelão. Estes oferecem a possibilidade a quem pretende publicar os seus livros, ensaios ou escritos científicos, em nítido contraste com a ideia de um mercado lucrativo, próprio da indústria do livro. As editoras cartoneras tornam-se, assim, um importante vetor de publicações independentes, subversivas, cujo atrativo não é a rentabilidade econômica.
O primeiro projeto será um sucesso na Argentina (2003), em um contexto de crise socioeconômica palpável. Washington Cucurto e Javier Barilaro fundaram Eloisa Cartonera, em uma cidade de Buenos Aires marcada por uma crise imputada pelo neoliberalismo. Os planos de readequação da economia mundial, decretados pelo Consenso de Washington (1989), levaram a uma retirada gradual do Estado ao longo da década de 1990. A partir daí, a lucratividade passou a prevalecer sobre a qualidade: as editoras não fogem a esse novo esquema e estão se tornando indústrias genuínas motivadas pelo lucro, complicando assim o cenário editorial. Surge então a questão de formar espaços literários alternativos que não tenham uma visão mercantilista das publicações literárias. Desta edição emergem projetos editoriais clandestinos, como as editoras cartoneras que refutam a lógica comercial do livro.
A primeira editora cartonera brasileira surgiu em 2007, Dulcinéia Cartonera, intimamente ligada às produções literárias das cartoneras presentes nos países hispano-americanos. Mesmo que o contexto econômico e social do Brasil em 2007 não seja desfavorável, como foi o caso da Argentina em 2003, a casa Dulcinéia Cartonera defende a mesma luta que seus pares latino-americanos, ou seja, a criação de espaços de resistência e trocas culturais e artísticas . Para ilustrar essa ligação entre as diferentes cartoneras presentes na América Latina, tomamos a seguinte citação:
“A editora cartonera ser um sucesso no Brasil é o próprio exemplo de uma estreita ligação com os territórios de língua espanhola e de uma demanda por relações específicas entre os universos linguístico-culturais próprios do Brasil e dos países de língua hispânica”. — FANJUL, A. P. MALHA FINA CARTONERA: NOVIDADE E PROJETO FORMADOR. ALEA: ESTUDOS NEOLATINOS, 18(2), 2016, 370, TRADUÇÃO DO AUTOREntre as várias publicações da editora Magnolia Cartonera, disponibilizadas no site Bibliotecas do Brasil, 7 livros foram publicados desde sua publicação em 2014. O preço médio do livro gira em torno de R$40 (cerca de 6,13 euros) com possibilidade de pagamento em 2x sem custos de entrega e em todo o território brasileiro. Todos os livros vendidos são únicos e feitos pela mão do talentoso Juliano Rocha que personaliza cada um dos livros encomendados. Os principais temas abordados nos livros dizem respeito à questão central das bibliotecas “livres” e “comunitárias” e por que elas permitem um melhor acesso à leitura enquanto burlam as leis do mercado. Encontramos este tema em 2 dos livros publicados pela Magnolia Cartonera: Guia Pratico para Bibliotecas Comunitarias, Bibliotecas Mudam o Mundo.
O Guia Prático para Bibliotecas Comunitárias está dividido em 6 capítulos que orientam passo a passo aqueles que desejam montar uma biblioteca comunitária. São estruturas autogeridas e independentes, que buscam promover espaços de leitura significativos dentro de uma comunidade local. A lógica do mercado não entra em jogo, pois, lembremos, o objetivo inicial de uma biblioteca comunitária é servir ao interesse coletivo. A partir dessa constatação, notamos que as publicações literárias presentes nas páginas da Magnolia Cartonera possuem um aspecto transgressor que se articula com a luta defendida pelas editoras independentes.
Assim como o livro Guia Prático para Bibliotecas Comunitárias, Bibliotecas Mudam o Mundo promove os benefícios de uma biblioteca comunitária. Além disso, há outros temas que abordam a questão das minorias presentes na sociedade, incluindo a comunidade LGBT, que muitas vezes se encontra em situação de vulnerabilidade. Publicado em 2016, o livro leva em conta o difícil contexto que o país enfrenta: o Brasil passa por uma grave crise econômica e social. Desde 2014, o país vem implementando grandes cortes orçamentários, principalmente em educação e saúde. Essa situação se agravou com a demissão de Dilma Rousseff em 2016 e a chegada de Michel Temer: o Brasil congelou os gastos públicos e as desigualdades sociais se ampliaram ainda mais. Este livro pretende ser uma solução alternativa às medidas de austeridade defendidas pelos dois últimos governos, mergulhando um número crescente de brasileiros em extrema precariedade. O capítulo 4, intitulado Desenvolvimento humano, pode servir de exemplo nesse sentido. Segundo os cofundadores da Magnolia Cartonera, este capítulo procura promover as seguintes ideias:
“Nos 3 textos deste capítulo você será informado dos programas dedicados a oferecer às comunidades leitoras oportunidades de aprendizagem, assistência e formação profissional, além de proporcionar espaços e ferramentas para a emancipação individual de cada um” — BIBLIOTECAS DO BRASIL, TRADUÇÃO DO AUTOR
Além do contexto brasileiro, o livro leva em conta a espiral reacionária que caracteriza um número crescente de países. A eleição de Donald Trump em 2016 é um sintoma disso: a do recolhimento dos povos em si mesmos. A partir daí, o livro se encerra com dois textos que oferecem soluções para a ignorância que ganha espaço. Uma delas, “Bibliotecas contra o ódio” busca demonstrar o importante papel desempenhado pelas bibliotecas contra os discursos de ódio e intolerância que atingem as minorias e as condenam a serem confinadas a posições subalternas. Este texto visa unir e não dividir em um contexto em que as sociedades sofrem de intolerância umas com as outras.
A editora Magnolia Cartonera está ganhando popularidade no Brasil, mas também em todo o mundo. De acordo com o site oficial da editora independente, mais de 161 cidades receberam uma edição de Magnolia Cartonera, incluindo cidades da América do Norte, mas também da Europa. Ao todo, Magnolia Cartonera teria vendido 1.000 livros em 26 países diferentes desde o início. Esse fenômeno pode ser explicado por um uso muito controlado das redes sociais, um meio de comunicação essencial para as editoras independentes. Desde então, encontramos Magnolia Cartonera em várias plataformas digitais, incluindo Facebook, Twitter, YouTube, Instagram…
Magnolia Cartonera é uma editora que busca promover o intercâmbio cultural, a tolerância, a leitura para todos e o estabelecimento de uma cultura literária em escala local. Destina-se a lutar contra a intolerância que mina as sociedades de hoje e restringe as liberdades individuais. O livro permite a emancipação de todos na sociedade, dá as ferramentas para pensar e agir melhor, para construir um mundo melhor onde a tolerância e a prosperidade sejam valores compartilhados. A Magnolia Cartonera não é apenas uma pequena editora independente: ela busca democratizar o acesso ao livro para toda a sociedade.
Para mais:
Fanjul, A.P. (2016). Malha fina cartonera: Novidade e projeto formador. Alea: Estudos Neolatinos, 18(2), 369-374. https://doi.org/10.1590/1517-106X/182-369
ROSA, FGMG. “Os primórdios da inserção do livro no Brasil”. In PORTO, CM., org. Diffusion e cultura científica: alguns recortes[online]. El Salvador: EDUFBA, 2009. pp. 75-92. ISBN 978-85-2320-912-4. Disponível em SciELO Books <http://books.scielo.org
Leia também o artigo de Maceo Coutinho: Acesso à leitura por e para todos: Magnolia Cartonera
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Algumas observações sobre o artigo: São 3 livros que a Magnolia Cartonera publicou sobre bibliotecas, sendo 2 deles sobre bibliotecas comunitárias e livres: Ideias para Bibliotecas Livres e Guia Prático para Bibliotecas Comunitárias.
O livro Bibliotecas Mudam o Mundo é sobre diversos tipos de bibliotecas públicas internacionais (e até livrarias) que se destacam com iniciatiavas, programas, projetos e atitudes em situações / momentos e eras críticas para a humanidade. É um livro sobre o futuro das bibliotecas, conscientes e humanas.
Sobre o lançamento da Cartonera do Jornal Boca de Rua em Porto Alegre em 2014, as informações aprofundadas estão nesse post em que contamos como foi o primeiro contato de Dani Carneiro e Juliano Rocha com o mundo dos livros cartoneros
Ao total, até o presente momento, a Magnolia Cartonera tem 18 publicações sendo:
- 6 livros cartonera: Cartonera Bibliotecas do Brasil (2014), Eles Chegaram!/No Terminal (2016), Ideias para Bibliotecas Livres (2015), Guia Prático para Bibliotecas Comunitárias (2016), Bibliotecas Mudam o Mundo (2016), Sobre Livros Cartoneros (2019).
- 1 livro convencional (edição paperback): Ideias para Bibliotecas Livres (2021)
- 8 zines: 7 volumes do zine Magnolia Zine e 1 volume do Zine Bibliotecas do Brasil (2017/2018)
- 3 ebooks: Ideias para Bibliotecas Livres (2020), Bibliotecas Mudam o Mundo (2021) e Sobre Livros Cartoneros (2020)